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 NOTA TÉCNICA DO GRUPO DE TRABALHO PARA A IMPLEMENTAÇÃO E MONITORAMENTO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA PESSOAS COTAS TRANS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO A RESPEITO DA PROPOSTA DE APROVAÇÃO DAS COTAS TRANS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

1 - Sobre o Grupo de Trabalho para a Implementação e Monitoramento das Cotas Trans nas Universidades Públicas do Estado do Rio de Janeiro 

No dia 18 de abril de 2024, realizou-se, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), a audiência pública “Cotas abrem portas: Desafios para o acesso e permanência da população trans e travesti no ensino superior e no mercado de trabalho formal”, por iniciativa da deputada estadual Dani Balbi, presidenta da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da ALERJ.

 

A audiência pública mencionada supra teve como objetivo incentivar a aprovação e a implementação de políticas de reservas de vagas em universidades públicas destinadas à população transexual, travesti e não binária, como um mecanismo para garantir a sua entrada e permanência nas universidades e ampliar as oportunidades de acesso ao mercado formal de trabalho. 

 

Além disso, a audiência pública teve como resultado a criação do Grupo de Trabalho para a Implementação das Cotas Trans nas Universidades Públicas do Estado do Rio de Janeiro, cujo objetivo principal é o de reunir seus respectivos representantes a fim de elaborar estratégias coletivas para a efetiva aprovação das ações afirmativas para o ingresso de pessoas transexuais, travestis e não binárias no ensino superior. 

 

2 - Considerações sobre a adoção de ações afirmativas para o ingresso de pessoas transexuais, travestis e não binárias no ensino superior 

A presente nota técnica tem o objetivo de oferecer elementos para endossar a aprovação de ações afirmativas para pessoas transexuais, travestis e não binárias na graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

 

Nos últimos anos, diversas universidades federais têm aprovado ações afirmativas para pessoas trans na graduação. Hoje, no Brasil, são pelo menos 29 universidades federais que oferecem cotas trans a partir da graduação. Dentre elas:

 

  • Região Norte

    • Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

    • Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)

    • Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)

    • Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)

 

  • Região Nordeste

    • Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB)

    • Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

    • Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)

    • Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar)

    • Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    • Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)

    • Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE)

 

  • Região Centro-Oeste

    • Universidade Federal de Goiás (UFG)

    • Universidade de Brasília (UnB)

    • Universidade Federal de Catalão (UFCAT)

 

  • Região Sudeste

    • Universidade Federal Fluminense (UFF)

    • Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

    • Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)

    • Universidade Federal de Lavras (UFLA)

    • Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

    • Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    • Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

    • Universidade Federal do ABC (UFABC)

    • Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

    • Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

    • Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)

 

  • Região Sul

    • Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

    • Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

    • Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

    • Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

 

O estado do Rio de Janeiro tem sido um protagonista no processo de implementação das cotas trans. Na ALERJ, tramita o PL 214/2023, da Deputada Dani Balbi que visa estabelecer cotas para pessoas trans nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. No âmbito federal, como se vê acima, três importantes universidades federais já aprovaram cotas específicas para pessoas trans na graduação: UFF, UFRRJ e UNIRIO.

 

As políticas afirmativas se consolidaram como uma ferramenta poderosa para a promoção da mobilidade social e o combate à discriminação, e demonstraram ser imprescindíveis para a garantia da cidadania das populações vulnerabilizadas e a sua permanência nas instituições de ensino, sobretudo quando são considerados os desafios que essa parcela da população enfrenta no acesso à educação desde o ensino fundamental e médio.

 

A despeito da ausência de legislação federal ou estadual que imponha a adoção de ações afirmativas específicas para pessoas transexuais, travestis e não binárias para o ingresso e a permanência  no ensino superior público, o movimento social trans brasileiro tem protagonizado uma articulação intersetorial para tornar as cotas trans uma realidade em nosso país. Essa articulação tem ocorrido em meio a um diálogo direto com as universidades, que, com autonomia que lhes é devida, têm avançado e assegurado essas políticas.

 

À guisa de exemplo, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) elaborou extenso documento intitulado “Nota técnica sobre sobre ações afirmativas para pessoas trans e travestis e o enfrentamento da transfobia no contexto da educação superior”, considerando a “urgência de enfrentamentos institucionais e aos processos históricos e estruturais que culminaram na exclusão das pessoas trans e travestis das unidades de educação superior e que exigem medidas de reparação frente a este cenário”¹. O documento, além de trazer um perfil aprofundado, apresenta caminhos e propostas para a efetivação das cotas trans.

 

A possibilidade de aprovação de cotas trans na UFRJ, considerada a maior universidade federal do país, representa um avanço histórico no compromisso do Estado brasileiro com a proteção da vida das pessoas trans e com o enfrentamento às desigualdades econômicas, sociais, culturais e ambientais enfrentadas por essa comunidade.

 

3 - Dados sobre a exclusão social e a marginalização da população trans no Brasil

O Brasil vive um estado de escassez de dados sobre a população trans produzidos pelo Estado, o que denota uma falta de compromisso político com as vidas desse grupo social, que deve ser superado com urgência. 

Apesar disso, diversos dados produzidos por organizações do terceiro setor, ou por projetos financiados por fundações filantrópicas, demonstram o grave quadro de desproteção social vivido pela comunidade trans no Brasil, corroborando a adequação e a necessidade da adoção de ações afirmativas pelas universidades públicas destinada a esse grupo social. A política de produção sistemática da invisibilidade trans nos dados pelo Estado ressalta ainda mais o valor do que vem sendo apresentado pelas instituições da sociedade civil. 

 

3.1. - Assassinatos de pessoas trans no Brasil

Desde 2008, o Brasil ocupa o 1º lugar no ranking dos países que mais matam pessoas trans, elaborado anualmente pela organização Transgender Europe².

Entre os anos de 2017 e 2024, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) mapeou um total de 1179 assassinatos de pessoas trans, travestis, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias brasileiras. Em 2024, foram 122 assassinatos³. Há ainda graves violências e violações de direitos humanos contra pessoas trans publicadas no Atlas da Violência⁴ e vindas de informações do Disque 100 do MDHC⁵.

 

3.1.1 - Assassinatos de pessoas trans no estado do Rio de Janeiro

Entre os anos de 2017 e 2024, a ANTRA contabilizou 93 assassinatos de pessoas trans ocorridos no estado do Rio de Janeiro, o que o levou ao 4º lugar no ranking dos estados em que mais pessoas trans foram assassinadas. Em 2024, foram mapeados 10 assassinatos, figurando o estado, ainda, em 4º lugar⁶. Em 2018, dados do Dossiê LGBQTIA+ do ISP-RJ⁷ reforçaram as informações que haviam sido informadas pela entidade.

 

3.2 - Direito à educação, direito ao trabalho e situação socioeconômica de pessoas trans no Brasil

De acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), pessoas trans e travestis representam apenas 0,2% dos estudantes em instituições públicas de ensino superior no Brasil.⁸

 

Os dados da ANTRA, por sua vez, mostram que cerca de 70% das pessoas trans e travestis não concluíram o Ensino Médio e que, até 2024, haveria no Brasil menos de 30 mulheres trans e travestis doutoras⁹. Por outro lado, apenas 4% da população de travestis e mulheres transexuais se encontra em empregos formais, enquanto 6% ocuparam relações informais de trabalho e 90% estariam na prostituição.¹⁰

 

3.2.1 - Direito à educação, direito ao trabalho e situação socioeconômica de pessoas trans no estado do Rio de Janeiro

Há poucos dados específicos sobre a situação socioeconômica vivida pela população trans no estado do Rio de Janeiro.

O Programa Rio Sem LGBTIfobia, em 2023, disponibilizou dados genéricos sobre a situação empregatícia das pessoas LGBTQIAPN+ que são atendidas¹¹:

  1. 35,7% das pessoas atendidas estavam desempregadas. 

  2. 16,7% recebem abaixo de um salário mínimo, 14,6% um salário mínimo e 12,8% não têm renda. 
     

Especificamente sobre travestis e mulheres transexuais, de acordo com uma pesquisa elaborada pelo Laboratório de Diversidade Sexual e de Gênero da UERJ, quase 75% das travestis no estado ganhavam menos de R$2.000,00 (dois mil reais) mensais, e mais de 50% das mulheres trans estavam na mesma situação. ¹²

 

Em 2021, através de um projeto desenvolvido em parceria com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Prefeitura do Rio de Janeiro entrevistou 526 pessoas trans e travestis. Segundo o levantamento, uma em cada três pessoas declarou fazer apenas uma refeição por dia ou menos. Além disso, 43% das pessoas participantes relataram ter parado de estudar por falta de dinheiro. A pesquisa mostrou, ainda, que 60% delas teriam renda incerta ou insuficiente.¹³

 

3.4 - Relevância dos dados apresentados para a adoção de ações afirmativas para pessoas trans

Os dados apresentados expressam o quadro de vulnerabilidade social e de sistemática violação de direitos humanos vivido pela população transexual, travesti e não binária no Brasil, marcado pela violência letal e pela negação de direitos fundamentais.

 

Em contrapartida, também evidenciam a responsabilidade das universidades públicas no reconhecimento das barreiras estruturais que afastam pessoas trans do ensino superior, bem como o seu papel na criação de mecanismos de inclusão e de reparação histórica.

 

4 - Marcos jurídicos

Em 2012, no julgamento da ADPF 186/DF, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade das políticas de ações afirmativas no ordenamento jurídico brasileiro.  Na decisão, o STF considerou que o princípio da igualdade é relacionado ​a escolhas voltadas à concretização da justiça social. Vejam-se alguns trechos da ementa do acórdão: 

 

I - Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão (…) de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. 

II - O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. (…)

 

Além disso, o STF também reforçou compromisso da universidade pública com a inclusão e a diversidade:

É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro (…). Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos.

 

Também em 2012, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que estabeleceu que as instituições de ensino superior federais do Brasil reservassem 50% das vagas para alunos oriundos de escolas públicas. Essa lei também previu a inclusão de cotas para pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, seguindo a proporção desses grupos na população de cada estado.  

Posteriormente, a Lei 14.723/2023 trouxe algumas atualizações importantes para o sistema de cotas no ensino federal brasileiro. Contudo, apesar de ter renovado o compromisso do Estado com a superação das desigualdades sociais enfrentadas por grupos vulnerabilizados por meio de ações afirmativas, a referida lei não incluiu a população transexual, travesti e não binária como destinatária dessa política.

 

4.1 - Autonomia universitária e a não taxatividade da Lei nº 12.711/2012 

Nesse ponto, deve-se ressaltar que a Lei nº 12.711/2012 não foi taxativa ao estabelecer o regime de cotas. Com efeito, o Decreto nº 7.824/2012, que a regulamentou, reforçou a possibilidade da criação de outras ações afirmativas. Veja-se:

 

Art. 5º - Os editais dos concursos seletivos das instituições federais de educação de que trata este Decreto indicarão, de forma discriminada, por curso e turno, o número de vagas reservadas. 

(…)

§ 3 º Sem prejuízo do disposto neste Decreto, as instituições federais de educação poderão, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas .1 suplementares ou de outra modalidade.

 

Assim,  no exercício de sua autonomia administrativa, assegurada pela Constituição Federal no art. 207, não é vedado às universidades públicas a instituição de políticas afirmativas voltadas a grupos sociais marcados por uma exclusão histórica de acesso a direitos que não tenham sido contemplados na Lei 12.711/2012 - como a população transexual, travesti e não binária, conforme demonstrado pelos dados apresentados no item 3 desta nota técnica.

 

4.2 - Reconhecimento da transfobia como uma dimensão social do racismo pelo STF

Em 2019, o STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, reconheceu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que incriminasse atos atentatórios aos direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTQIAPN+. 

 

Para além das discussões a respeito da criminalização da homotransfobia, a tese firmada pelo STF representou um avanço institucional na tutela jurídica e social da comunidade LGBTQIAPN+, e estendeu a essa comunidade as normas destinadas ao combate ao racismo. Veja-se, nesse sentido, o seguinte trecho da tese:

 

3 - O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

 

Assim, ainda que o Congresso Nacional permaneça em sua morosidade inconstitucional para a aprovação de leis que garantam os direitos da população LGBTQIAPN+, é possível recorrer às normas voltadas à superação do racismo e das desigualdades raciais para a sua proteção.

 

Dito de outro modo, toda a legislação concernente a ações afirmativas que se baseiam em critérios étnicorraciais podem e devem ser utilizadas para justificar a aprovação de cotas específicas para a população transexual, travesti e não binária.

 

4.3 - Proteção jurídica internacional

Os Princípios de Yogyakarta  sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero, em seus postulados 12 e 16, preconizam que:
 

  1. Toda pessoa tem direito à educação e ao trabalho digno e produtivo, sem discriminação por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero;
     

  1. Os Estados devem tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o acesso igualitário à educação, garantindo que toda pessoa tenha acesso a oportunidades e recursos para aprendizado ao longo da vida, sem discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive adultos que já tenham sofrido essas formas de discriminação no sistema educacional.

 

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), por sua vez, no art. 2.2, prevê que os Estados têm a obrigação de “garantir o exercício dos direitos (...) sem discriminação alguma por motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. Essa determinação inclui uma exigência de não discriminação tanto na letra da lei (discriminação formal) quanto nas condições efetivas que cada grupo social encontra ao acessar seus direitos (discriminação substancial). Ademais, em seu art. 13, estabelece que os Estados signatários reconhecem o direito de toda pessoa à educação, devendo garantir que a educação de nível superior deverá se tornar acessível a todos, por todos os meios apropriados.

 

O Comentário Geral nº 13 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pelo monitoramento do cumprimento das obrigações que o Pacto impõe aos Estados, ao analisar a extensão dos deveres estatais abrangidos pelo art. 13 do PIDESC, expressou que a acessibilidade é uma característica fundamental do direito à educação. A acessibilidade exige que a educação esteja ao alcance de todos, especialmente dos grupos vulneráveis de fato e de direito.

 

Posteriormente, no Comentário Geral nº 20 a respeito de não discriminação em direitos econômicos sociais e culturais, o Comitê expressou que combater apenas a discriminação formal, ao nivelar o tratamento legal, não é suficiente para eliminar as desigualdades reais. Assim, o Comitê recomenda que os Estados empreguem medidas específicas que visem corrigir desigualdades históricas e estruturais por meio de políticas públicas inclusivas e transformadoras. O Comitê também observou que medidas especiais temporárias que estabeleçam diferenças explícitas baseadas nos motivos proibidos de discriminação são legítimas e recomendáveis, desde que constituam uma forma razoável, objetiva e proporcional de combater a discriminação de fato e sejam descontinuadas assim que uma igualdade substancial sustentável for alcançada.

 

No plano do sistema interamericano de direitos humanos, a Opinião Consultiva 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos expressou o dever dos Estados de assegurar que indivíduos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e com o mesmo respeito a que têm direito todas as pessoas.

 

Além disso, no caso Pavez Pavez vs. Chile, a Corte IDH entendeu que, em virtude da obrigação de não discriminação estabelecida na Convenção Americana de Direitos Humanos (Art. 1.1, CADH), os Estados estão obrigados a adotar medidas positivas para reverter ou mudar situações discriminatórias existentes.

 

Por seu turno, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no Relatório sobre Pessoas Trans e de Gênero Diverso e seus Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DESCA), recomendou que os Estados adotem medidas e ações afirmativas que, conforme o contexto, sejam necessárias para superar barreiras históricas e estruturais que impedem que pessoas trans gozem de seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. 

Por fim, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância foi promulgada pelo Brasil com o status de emenda constitucional, e reafirmou o compromisso do Estado brasileiro em combater as diversas manifestações de racismo e garantir a igualdade de direitos e oportunidades para todos os grupos sociais. 

 

Um dos pilares centrais da Convenção são as ações afirmativas voltadas para grupos discriminados, com o objetivo de assegurar a igualdade de oportunidades e combater as disparidades raciais históricas. O artigo 5º estabelece que os Estados devem adotar “as políticas especiais e ações afirmativas necessárias” para garantir o pleno exercício dos direitos fundamentais dos grupos e indivíduos sujeitos ao racismo, promovendo condições equitativas para inclusão e progresso social. Além disso, o artigo 6º reforça a necessidade de políticas públicas destinadas a criar tratamento justo e oportunidades iguais, especialmente por meio de políticas educacionais, trabalhistas e sociais. 

 

4.4 – Dever jurídico de adoção de cotas para pessoas trans

Os elementos jurídicos acima apresentados demonstram que as ações afirmativas para o ingresso de pessoas trans no ensino superior encontram amparo nas normas constitucionais, na legislação infraconstitucional, nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Mais do que isso, refletem um dever jurídico de adoção de medidas para a superação de desigualdades estruturais e históricas impostas a essa comunidade.

 

Nesse sentido, veja-se trecho da Nota Técnica PFDC nº 1/2024, editada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que defendeu a adoção das cotas para pessoas trans em universidades, enxergando os seguintes objetivos nessa política:

 

(…) vê-se que as ações afirmativas têm dois objetivos: o de assegurar a inclusão de grupos discriminados e em desvantagem na sociedade e, ainda, o de incorporar à sociedade valores destes grupos, que de outro modo dificilmente seriam reconhecidas, dada as suas condições de marginalidade e preconceito. Destarte, a criação de oportunidades específicas para as pessoas trans é um caminho necessário para que haja não apenas o cumprimento da legislação nacional e internacional que garante a paridade de oportunidades. Trata-se de uma justa forma de tratar de maneira congruente com o princípio da igualdade material esse segmento social tão espoliado.¹⁴

 

Saliente-se que, em resposta à nota técnica supramencionada, a Secretaria de Ensino Superior do MEC afirmou que “as instituições de educação superior públicas, amparadas no princípio constitucional da autonomia universitária, podem ofertar vagas em seus cursos de graduação para as pessoas transgêneros e travestis”¹⁵ - bastando que definam os critérios de seleção e os informem nos editais próprios dos vestibulares ou à instância competente, caso utilizados outros meios de oferta das vagas, como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Ainda de acordo com o MEC:

 

O tema da inclusão das pessoas transgêneros e de outros grupos de pessoas LGBTQIAPN+ que se encontram em situação de exclusão deve ser aprofundado no âmbito de toda a Administração Pública, de forma a ensejar, sempre que for o caso, a instituição de políticas públicas apropriadas aos grupos que pretendem alcançar, com respeito ao princípio da legalidade, e demais princípios constitucionais e aqueles que regem a Administração Pública, com a finalidade de se alcançar um país mais justo e que possa ofertar as condições de existência digna a todos os seus cidadãos.¹⁶

Por fim, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ reconheceu a matéria de cotas para pessoas transgênero em universidades como de extrema relevância e de caráter urgente, com o fim de combater as desigualdades e promover a justiça social para essa população. ¹⁷

 

Assim, cabe às universidades públicas, assumir concretamente o seu compromisso com a promoção da igualdade e dos direitos econômicos, sociais e culturais da população transexual, travesti e não binária no Brasil.

 

5 – Conclusão

As profundas desigualdades vividas pela população transexual, travesti e não binária no Brasil exigem um comprometimento ativo de todas as instituições do Estado, que devem construir medidas eficazes para a garantia dos direitos e da dignidade dessa comunidade, em diálogo com a sociedade civil.

 

A instituição de cotas específicas para pessoas transexuais, travestis e não binárias para o ingresso no ensino superior rompe com a ideia de um Estado neutro e dá centralidade ao papel transformador da universidade pública na construção de uma sociedade igualitária e comprometida com os valores democráticos e os direitos humanos.

 

A UFRJ, como a maior universidade federal do Brasil, ostenta uma grande dimensão acadêmica, política e social, de modo que as suas decisões têm um importante potencial de orientar e impulsionar políticas públicas em outras instituições de ensino superior.

 

Nesse sentido, a aprovação das cotas trans na UFRJ representará um marco histórico na consolidação dos direitos dessa comunidade no Brasil, bem como confirmação das universidades públicas enquanto espaços de vivências plurais e de construção concreta de uma sociedade igualitária.

 

Assinam a presente nota técnica:

  • Dani Balbi - Deputada Estadual do Estado do Rio de Janeiro, presidenta da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da ALERJ

  • Bruna Benevides - Presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Membra do Conselho de Desenvolvimento Social Econômico Sustentável da Presidência da República (CDESS)

  • Gab Van - Diretor Executivo da Liga Transmasculina João W. Nery

  • Joyce Alves - Pró-reitora de graduação da UFRRJ

  • Márcio Neves - Diretor de Gênero e Pertencimento da Superintendência-Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade (Sgaada) da UFRJ 

  • Luana Azevedo de Aquino - Pró-reitora de Graduação da UNIRIO

  • Marcia de Freitas Lenzi - Assessora de Relações Institucionais do Gabinete da Presidência da Fiocruz

  • Rosana Rodrigues - Reitora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro-UENF

  • Alessandra Siqueira Barreto - Pró-reitora de Assuntos Estudantis da UFF

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BIBLIOGRAFIA

  1. ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Nota técnica sobre políticas de ações afirmativas para pessoas trans e travestis e o enfrentamento da transfobia no contexto da educação superior. Brasil: Antra, 2024. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2024/09/nota-tecnica-cotas-trans-antra-2024.pdf. Acesso em: 22 out. 2025.

  2.  BENEVIDES, Bruna G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2025, p. 52. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2025/01/dossie-antra-2025.pdf. Acesso em: 22 out. 2025. 

  3.  Idem, p. 62

  4.  Violência contra população LGBT cresceu mais de 1.000% na última década, mostra Atlas da Violência. O Globo, 13 maio 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/05/13/violencia-contra-populacao-lgbt-cresceu-mais-de-1000percent-na-ultima-decada-mostra-atlas-da-violencia.ghtml. Acesso em: 25 out. 2025. 

  5. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Brasil registra mais de 5 mil casos de violações de direitos contra lésbicas nos primeiros oito meses de 2023 — aponta Disque 100. Portal GOV.BR, 29 ago. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/agosto/brasil-registra-mais-de-5-mil-casos-de-violacoes-de-direitos-contra-lesbicas-nos-primeiros-oito-meses-de-2023-aponta-disque-100. Acesso em: 25 out. 2025.

  6.  Idem, p. 65.

  7.  https://www.rj.gov.br/isp/lgbt 

  8.  ASSOCIAÇÃO DOS SERVIDORES DA Universidade Federal da Bahia (ASSUFBA). “Pessoas trans representam apenas 0,2 % dos estudantes nas universidades federais”. [S.l.: s.n.], 22 ago. 2023. Disponível em: https://www.assufba.org.br/novo/pessoas-trans-representam-apenas-02-dos-estudantes-nas-universidades-federais/. Acesso em: 22 out. 2025.

  9.  ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Nota técnica sobre políticas de ações afirmativas para pessoas trans e travestis e o enfrentamento da transfobia no contexto da educação superior. Brasil: Antra, 2024, p. 9 e 16.  Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2024/09/nota-tecnica-cotas-trans-antra-2024.pdf. Acesso em: 22 out. 2025.

  10.  BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular; Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA); Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), 2020, p. 31. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf. Acesso em: 22 out. 2025. 

  11.  VOZ DAS COMUNIDADES. Segurança pública, educação e emprego e renda: os problemas enfrentados pela população LGBTQIA+ de favelas. Voz das Comunidades, 14 jun. 2024. Disponível em: https://vozdascomunidades.com.br/geral/seguranca-publica-educacao-e-emprego-e-renda-os-problemas-enfrentados-pela-populacao-lgbtqia-de-favelas/. Acesso em: 22 out. 2025.

  12.  AGÊNCIA BRASIL. Aos 15 anos, Rio Sem LGBTIfobia tem desafio de ampliar alcance. EBC, 29 jun. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-06/aos-15-anos-rio-sem-lgbtifobia-tem-desafio-de-ampliar-alcance. Acesso em: 22 out. 2025. 

  13.  Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. “Prefeitura divulga levantamento sobre realidade da população trans no Rio de Janeiro”. Publicado em 04 abr. 2022. Disponível em: https://prefeitura.rio/segovi/prefeitura-divulga-levantamento-sobre-realidade-da-populacao-trans-no-rio-de-janeiro/. Acesso em: 22 out. 2025.

  14.  MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Nota Técnica n.º 1/2024 – PFDC: [título completo se disponível]. Brasília: MPF, 2024. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias/NotaTenica12024.pdf. Acesso em: 22 out. 2025.

  15.  Ministério da Educação. Em resposta à PFDC, MEC reconhece importância da adoção de cotas para pessoas trans em universidades. Brasília, 12 jul. 2024. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias/em-resposta-a-nota-tecnica-da-pfdc-ministerio-da-educacao-reconhece-importancia-da-adocao-de-cotas-para-pessoas-trans-em-universidades. Acesso em: 22 out. 2025.  

  16. Idem.

  17.  Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. Nota de Cumprimento e Apoio à Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão referente ao posicionamento sobre adoção de cotas trans nas universidades. Brasília, 16 jul. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/cole­giados/conselho-nacional-dos-direitos-das-pessoas-lgbtqia-/notas-e-mocoes/nota-de-cumprimento-e-apoio-a-secretaria-de-educacao-superior-do-ministerio-da-educacao-e-a-procuradoria-federal-dos-direitos-do-cidadao-referente-ao-posicionamento-sobre-adocao-de-cotas-trans-nas-universidades. Acesso em: 22 out. 2025.  

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©2025 por Dani Balbi

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